Escritores do Século XIX usavam artifícios de enredo que hoje não convencem os leitores.

O romance mudou nos últimos 150 anos. Isso deveria ser óbvio (o que não mudou em 150 anos?). No entanto, novos escritores estruturam seus livros baseados nos mestres do século XIX, como Charles Dickens ou José de Alencar. Sem dúvida que temos muito a aprender com o vigor, ritmo, e drama nos textos destes autores, mas existem ciladas na imitação pura e simples destes “efeitos especiais”. Quando o romance ainda era uma novidade, podia-se cometer certos excessos que, na posição de escritores do século 21, não podemos. Aqui estão três armadilhas e como proceder para não cair nelas.

José de Alencar» Coincidência: … mas ele é meu irmão.
Nos romances desta época as coincidências eram o combustível do enredo. Pior ainda, às vezes concluíam as tramas. Hoje, isso é inconcebível. Mesmo no tempo de Dickens, alguns críticos acusavam-no de recorrer excessivamente às coincidências.

Em nossos dias, as exigências de realismo no enredo são ainda maiores. Os leitores estão muito menos predispostos a aceitar uma trama que se apóia em coincidências. Na realidade, um enredo que dependa de coincidências para desenrolar provavelmente nunca chegará aos leitores pois os editores o rejeitarão antes.

Suponhamos que você quer que o carcereiro seja parente da governanta de sua heroína – é importante para a sua história como é em “Um conto de duas cidades” de Charles Dickens. Será que você seria capaz de incluir isso em sua história sem ser acusado de utilizar coincidências gratuitas?

Século XIXÉ claro que sim, desde que você tenha em mente duas diretrizes:
Não mantenha em segredo os relacionamentos coincidentes. Ao invés disso, introduza estas personagens o mais cedo possível em sua história, pelo menos para o leitor, isso se não o fizer às outras personagens. Se, por exemplo, o primo do herói possuir a senha do arquivo do computador que soluciona o assassinato, então deixe bem claro que ele é um hacker. Mesmo que o herói não saiba que seu primo tem essa capacidade de resolver o crime, deixe que o leitor saiba. Desta forma, ao invés de rejeitar o envolvimento do primo como fato inverossímil, ele estará esperando que isso aconteça. Assim, uma coincidência é transformada em um prenuncio do acontecimento.

Se for absolutamente necessário para o enredo usar uma coincidência, use-a cedo na trama. Somos capazes de aceitar que dois carros se choquem num cruzamento e que ambas as motoristas sejam ex-esposas do mesmo homem. No entanto não acreditaremos nisso se estivermos acompanhando as vidas dessas mulheres durante 300 páginas e de repente bam! por um acaso elas sofrem um acidente exatamente no momento em que é imprescindível que se conheçam. Em outras palavras, lhe é permitido uma coincidência como preparação para o enredo, mas o leitor jamais engolirá uma coincidência como resolução de uma trama. A conclusão precisa ser uma conseqüência lógica.

Charles Dickens» Finais Melosos: … e viveram felizes para sempre.
Será que os leitores modernos aceitam finais felizes? É claro que sim! Será que aceitarão um final que seja excessivamente sentimental? Nem pensar. Por que não, e o que define essa diferença?

Nenhum livro pode existir independente da cultura em que foi escrito. Na Inglaterra do século XIX as pessoas queriam acreditar em fantasias “grudentas” sobre o amor, as mulheres e a vida familiar. Queriam acreditar que estas coisas pudessem permanecer perfeitas, ano após ano, intocadas pelas decepções e dificuldades emocionais.

Será que isso significa que você deva escrever finais cínicos e desesperadores? Não, é claro que não. O público moderno, na sua maioria, não é composto de cínicos e ainda quer acreditar na felicidade. No entanto, têm consciência, também, que o casamento entre duas pessoas de bom coração não é garantia suficiente para uma vida feliz para sempre. Já presenciamos fatos demais para acreditar nisso: o casamento de conto de fadas que leva o príncipe e a princesa a requererem um divórcio dez anos depois. O casal ideal que é pego num escândalo de adultério. O casamento dedicado que termina antes da hora por que a esposa é atropelada por um motorista bêbado ao cruzar a avenida.

Na verdade, este dilema tem duas soluções diferentes. Uma é retratar um momento perfeito e não uma vida perfeita. Isso parecerá mais verossímil ao leitor moderno.

A segunda escolha é acrescentar sombras ao final feliz. Você pode fazer isso apresentando os protagonistas como estando felizes mas sem ilusões em relação as suas vidas no fechamento do enredo. Este tipo de personagem conquistará muito mais respeito dos leitores modernos.

Um final misto, de ganhos e perdas, se torna muito mais crível. A vida é assim, e seus leitores sabem disso.

» Nomes: … e o Sr. como se chama?
Inúmeros autores do século XIX, principalmente na literatura inglesa, davam nomes aos seus personagens para que soassem como suas personalidades. Alguns exemplos em Dickens são: Uriah Heep (David Copperfield) que é pegajoso e servil; Wackford Squeers (Nicholas Nickleby) que adora bater (wack em inglês) em meninos e também é um tanto esquisito; ou Sr. Stryver (Um Conto de Duas Cidades) luta (strives em inglês) muito, do seu jeito pernóstico e vulgar.

Não devemos exagerar quando damos nomes às personagens. O público do século XIX achava graça nisso; nós achamos que são fajutos. Dê nomes normais e faça com que os atos praticados pelas personagens caracterizem suas ações.

Escritores modernos podem e devem aprender muito a partir dos romances do século XIX. Mas devem saber o que acatar e descartar, pois os tempos mudam!

» Dicas Rápidas
– Para que seu final seja crível não recorra a soluções milagrosas. Se a sua história depender de uma coincidência, não faça cair do céu, introduza o fato no início do enredo.
– Romance sim, pegajoso não. Seja realista e tempere idealismo verdades da vida.
– Pessoas normais têm nomes normais. Uma história que se pareça com a vida real precisa de personagens que o leitor possa se identificar. Por isso escolha nomes comuns, mas criativos!

Os Maus e Velhos Tempos

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