“Marchioro, pereaí. Só mais uma pergunta. É verdade que o escritor só publica para não ter mais que revisar o texto?” Noite de sexta-feira, 22:45, inverno, no estacionamento da Universidade Positivo em Curitiba. Sem me virar reconheci a voz. Boa aluna. Criativa. Culta. Dedicada. Pensei: “Duvido que seja só uma pergunta”. Enquanto abria o carro e jogava minha bagulhada no banco traseiro, ela veio na minha direção, arrumando o capuz do casaco para proteger-se do frio.

Pensei… putz! Não existe como dar uma resposta rapidinha para uma pergunta como esta. Sem contar o cansaço, o frio, a fome e um bando de amigos em casa, já comendo o churrasco que eu deveria estar assando. O que eu falei para ela está refletido no conteúdo do artigo “Faça-se um favor, revise seu texto!”, publicado anteriormente aqui no Parágrafo. Em síntese, você é obrigado, nem que seja só por respeito aos seus leitores ou editores, a revisar seu texto com microscópio. Quando achar que chegou a hora de publicá-lo ele tem que estar perfeito, livre de erros. Para que isto aconteça, revise seu texto quantas vezes forem necessárias.

Naquela noite o final da conversa aconteceu já pela janela do carro, meio fechada e eu acelerando. O que não falei para a aluna é que chega um momento em que, como diz o ditado, “o ótimo vira inimigo do bom”. Isto é, quando você perceber que está lendo o texto, relendo o texto, lendo de novo, e de novo e já chegou a um ponto onde está simplesmente trocando palavras sem introduzir mudanças significativas, passou da hora de declarar o material pronto para lançamento.

Geena de Fábio Marchioro e Gabriel Campanholo - Ed. Pós-Escrito 2003Lembro quando estava escrevendo “Geena” com Gabriel Campanholo. Na fase final do livro era como se determinado capítulo se recusasse a ficar pronto. Acho que era porque nós não gostávamos do personagem que era introduzido ali: Oliveira, um tipinho cafajeste, safado, imoral e com hábitos de higiene pouco recomendáveis.

Certo dia recebi um envelope com uma nova versão do capítulo sobre o Oliveira. Em tese, a final. Gabriel havia declarado o texto pronto. Abri e, seguindo um impulso, peguei a caneta e comecei a revisar o texto. Percebi que o Gabe havia mudado pouca coisa: o desodorante que o fedido do Oliveira estava usando nesta enésima versão do texto era “Rastro”. Na versão que mandei para o Gabriel revisar eu tinha escrito que ele usava “Avanço”. E na anterior, revisada pelo Gabriel… sim: Rastro. Que eu já tinha alterado para Avanço! Este sim é o clássico exemplo de se trocar seis por meia-dúzia.

Entregue e publique

Se, e quando isto acontecer, entregue o material. Publique. Imprima e mande. Anexe ao e-mail e clique enviar. Nada é mais precioso do que o tempo. Em uma situação como aquela do Oliveira e seu desfedorante, estávamos perdendo muito tempo.

É necessário deixar o texto descansar e voltar para ele com um olhar renovado? Claro. Mas esta regra tem um corolário: sempre que possível. E às vezes, não será possível. E, juro, às vezes é bom que não seja possível.

Neste caso use o bom senso. Deixe o texto dormir nem que seja enquanto você toma uma xícara de café. Quando terminar de escrever, olhe pela janela. Ouça uma música… UMA música… e volte para o computador. Revise com atenção, prestando atenção na gramática, na concordância, na coerência e na lógica do texto. Neste momento evite se apaixonar pelo que acabou de produzir. Não fique dando tapinhas nas próprias costas, admirando seu talento. Seja crítico, frio, profissional. Não fique simplesmente embaralhando palavras, mudando a ordem dos parágrafos, e trocando Rastro por Avanço. O que acontece é que chega um ponto onde caímos em um poço escuro chamado de atenção seletiva.

Graciela Inchausti de Jou no seu artigo Atenção seletiva: um estudo sobre cegueira por desatenção afirma que “existe a convicção de que tudo o que nossos olhos vêm é percebido e lembrado como uma experiência de nossa vida. No entanto às vezes não percebemos o que os olhos vêm e, outras, percebemos o que os olhos nunca viram.” Segundo ela a cegueira por desatenção é um efeito da atenção seletiva, pois quanto mais o foco da atenção estiver centrado no estímulo selecionado, neste caso um texto ou um trecho de um texto, maior será a possibilidade de percebê-lo, processá-lo e lembrá-lo conscientemente. Ao mesmo tempo, menor será a possibilidade de perceber e lembrar outros estímulos. Assim é que nossa atenção seletiva nos permite suprimir detalhes que, aparentemente, não são relevantes naquele momento em favor de outros que parecem ser.

É por isto que os auto-tapinhas nas costas ou outras atitudes auto-congratulatórias têm que necessariamente ser abandonadas no momento da revisão. Concentre-se. Revise. Pare de perder tempo. Seja honesto consigo mesmo, com seus leitores e seu editor: declare o texto pronto e parta para o próximo. É muito mais confortável e menos trabalhoso ficar revisando um texto já escrito. Tenha coragem e vá em frente. Claro que se você acha que precisa fazer mais uma entrevista, ou expandir a pesquisa, ou aprofundar detalhes da personalidade de uma personagem, seu texto não deverá ser declaro terminado.

Mas saiba identificar aquele momento vital para sua carreira quando deverá ficar claro que o texto está pronto. Lembre que o escritor sempre é perseguido pelo resultado da equação tempo versus qualidade. Esta equação terá que ser balanceada. Sempre.

Quando Rastro brigou com Avanço.

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